Artigo elaborado pela Dra. Carla Cristina Carvalho – Médica Obstetra comprometida com a humanização do nascimento. Mãe da Elisa.
Atualizado em Janeiro 2024
Parto humanizado é coisa de hippie?
Antes que você diga “quero um parto normal, mas sem ser humanizado, porque é radical e a gente sofre muito”, vamos entender o que realmente transforma um parto em “humanizado”?
De onde surgiu esse termo?
Esse movimento de “parto humanizado” se fortaleceu na década de 80 em resposta ao que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de “hospitalização do parto”: o processo histórico que tentou “acabar com a dor e o sofrimento do parto” e transformou um fenômeno natural – o parto – em um evento exclusivamente médico, hospitalar e com o uso padrão e repetitivo de intervenções e cirurgias, mesmo quando não há evidências médicas com benefícios comprovados.
Além disso, a hospitalização do parto vai na contramão dos movimentos de protagonismo feminino que temos vivido. Afinal, parir é um fenômeno da mulher, mas numa cirurgia cesariana o bebê é retirado de nós, quase sem nossa participação.
O que é, então, um parto humanizado?
Hoje em dia o termo “parto humanizado” é usado para descrever:
- Um parto vaginal, em que a gestante é a protagonista do seu parto.
- Onde se respeita a fisiologia do parto, com o mínimo possível de intervenções. A humanização entende a gestação e o parto como eventos fisiológicos, cabendo aos profissionais apenas acompanhar o processo, sem interferir desnecessariamente.
- Onde as condutas são baseadas em evidência científica atualizadas por estudos recentes.
Aqui você encontra:
Como “funciona” um parto humanizado?
Um dos grandes princípios de um parto humanizado é o respeito à autonomia e protagonismo da grávida que está parindo.
A grávida terá autonomia e será respeitada:
- A grávida poderá se movimentar livremente, comer e beber o que quiser (respeitadas as contraindicações para a saúde, se houver) e quando desejar.
- Ela terá liberdade para escolher como e onde deseja se posicionar para parir.
- Ela não será amarrada, não será presa a uma cama ou terá as pernas abertas e presas na perneira.
- A grávida será livre para vocalizar, gritar, cantar ou xingar tanto quanto queira.
- É inadmissível qualquer tipo de abuso verbal ou psicológico, como: fazer piadas, humilhar, constranger, ameaçar, ofender, gritar, desrespeitar, desconsiderar padrões e valores culturais.
- Ela não será obrigada a se depilar, nem será depilada antecipadamente ao parto. Não é necessário depilar para parir.
- O ambiente será de luz baixa e com música e aroma de sua escolha.
- A equipe não manterá conversas paralelas que atrapalhem o momento de introspecção da gestante.
- Não haverá falta de privacidade, e só entrarão na sala de parto as pessoas autorizadas pela gestante. Não haverá fotos ou filmagem sem seu consentimento.
- Ela sempre terá direito a um acompanhante ou à presença da família inteira (nos partos domiciliares), fotógrafa, doula, enfermeira obstétrica e quem mais ela julgar importante. Da mesma forma, ela será igualmente apoiada se não quiser a presença de ninguém.
A grávida será informada e acolhida:
- A gestante tem o direito de entender as opções de conduta médica disponíveis para cada momento do seu parto. Por isso, todos os procedimentos sugeridos devem ser explicados de maneira clara, transparente e com termos e palavras que sejam compreensíveis a pessoas leigas.
- Sua opinião deve ser ouvida e ela tem direito de participar das decisões que forem tomadas. As decisões serão compartilhadas. Ela precisa consentir todo e qualquer tipo de intervenção. Somente nos casos claros de risco iminente de morte, o procedimento pode ser realizado sem consentimento, mas ela tem o direito de ser adequadamente informada antes dos procedimentos.
- A grávida será respeitada no seu pedido de analgesia (não-farmacológica e farmacológica) se ela estiver disponível, sem críticas ou julgamento.
- A grávida não será obrigada a continuar seu trabalho de parto, se o parto normal deixar de ser seu desejo, nem será julgada ou criticada caso decida alterar os planos para uma cesariana durante o trabalho de parto.
Outro grande princípio é o da não-intervenção, ou seja, respeitar a fisiologia natural do parto.
Não intervenção, a não ser que seja necessária e benéfica:
- O parto humanizado prioriza o início espontâneo do trabalho de parto sempre que possível.
- A indução de parto (estimular o início do trabalho de parto com uso de remédios) é oferecida em situações específicas em que o risco de continuar naturalmente com a gestação é equivalente ou maior que o risco de antecipar o nascimento, seguindo as evidências científicas mais atuais.
- O parto não precisa ser “acelerado” com intervenções ou medicações apenas por pressa. Quando mãe e bebê passam bem, se aguarda o tempo necessário para a evolução do parto.
- Não é necessário deixar a gestante com acesso venoso sem indicação.
- Não é necessário realizar toques ou ausculta o tempo todo.
- A ausculta dos batimentos cardíacos do bebê é feita de acordo com os protocolos atualizados por evidências científicas.
- Não é preciso fazer analgesia por padrão, sem que a paciente solicite.
- O parto instrumental (uso de vácuo extrator kiwi ou fórceps) é feito quando houver risco de morte da mãe ou do bebê no período expulsivo. A escolha entre eles é baseada em evidências científicas e respeita a disponibilidade no local e a situação de cada parto.
A intervenção, quando necessária, será baseada em evidências científicas que suportem o benefício para a mãe e o bebê. Por isso, não são mais recomendadas:
- Deixar a paciente em jejum para o trabalho de parto.
- Depilação dos pelos íntimos (chamada tricotomia).
- Lavagem intestinal.
- Toque vaginal recorrente e sem consentimento.
- Monitorização fetal (ausculta) com intervalo mais curto que o indicado por estudos, sem que haja necessidade.
- Obrigação de parir na posição clássica (litotomia), deitada com as pernas na perneira.
- Episiotomia, aquele corte na vagina para “facilitar” a saída do bebê. Apesar de a OMS aceitar uma taxa de episiotomia em até 10% dos partos com assistência médica, não existem estudos de boa qualidade demonstrando benefícios dessa prática – alguns deles, inclusive, demonstram prejuízo para o períneo.
- Manobra de Kristeller, o empurrão na barriga.
- “Ponto do marido” no períneo, um ponto a mais na sutura que deixa a entrada da vagina mais fechada.
Para ser humanizado, o parto tem que ser na água?
Para ser humanizado, o parto tem que ser onde a gestante quer que seja 🙂
Ele não precisa ocorrer no meio do mato, em casa, na água, em uma posição determinada. A imersão na água pode trazer conforto à parturiente e talvez proporcionar uma transição mais suave para o bebê que vive em meio aquático dentro do útero, mas só é útil nos casos em que a gestante deseja que seja assim.
Parto humanizado não é um “tipo de parto”. É um processo de assistência com respeito, ética, segurança para com a mãe e seu bebê, propiciando uma experiência saudável e positiva de parto.
Por que, para ser humanizado, o parto tem que ser normal?
Em um parto humanizado priorizamos a via vaginal porque esse é o caminho mais natural para o nascimento, e estudos médicos recentes demonstram que há mais benefícios para mãe e bebê.
Há alguns casos, no entanto, em que as evidências científicas apontam que a segurança da mãe ou do bebê está ameaçada por alguma complicação na gestação ou no trabalho de parto. Nessas situações, uma cesariana (necessária e justificada) pode e deve ser realizada seguindo os princípios da humanização, e alguns cuidados transformam o ato cirúrgico mecânico e frio em uma experiência única e mais empática.
E a dor do parto, como é vista pela humanização?
Um parto humanizado, apesar do desconforto, não precisa ser sinônimo de sofrimento.
- Primeiro porque a dor que sentimos tem um motivo: ela é a mais antiga “parteira” que existe.
Quando a mulher consegue se conectar com seu corpo e lidar instintivamente com a dor, ela vai ser um guia para adotar as posições de maior conforto e literalmente “abrir caminho” para o nascimento.
Com frequência, a posição que alivia uma dor localizada é também a melhor forma de liberar a rotação e encaixe do bebê.
- Segundo porque a forma de experienciar a dor depende de uma série de fatores individuais e sofre influência das expectativas da gestante, carga emocional e do ambiente onde acontece o parto.
É por isso que cuidamos tanto para que a grávida se sinta acolhida e o ambiente do parto seja aconchegante, seguro e pacífico.
- E por último, porque a gestante não é obrigada a lidar com a dor sem apoio.
Existe uma série de técnicas não-farmacológicas para alívio antes de partir para a analgesia tradicional, e muitas vezes elas são suficientes para oferecer mais conforto à grávida – e assim, ajudá-la a lidar melhor com a dor.
Por fim, caso a gestante deseje, a analgesia tradicional deve ser realizada com a técnica adequada (em doses baixas, com o objetivo de alívio), sem que ela impeça os outros princípios da humanização: a livre movimentação, a possibilidade de se alimentar ou ingerir líquidos e a sensação das contrações e dos puxos naturais, para que a grávida sinta o melhor momento de empurrar.
Por que não damos anestesia logo no início do parto?
Quando realizamos uma interferência médica (até mesmo a analgesia) e ela não é necessária, inevitavelmente alteramos toda a dinâmica do parto, e isso tem um efeito cascata na fisiologia que é imprevisível.
Não é incomum que a analgesia desequilibre a progressão do trabalho de parto, exigindo mais intervenções – o que, em alguns casos, pode levar à cesárea.
Por isso, o ideal é que a analgesia tradicional seja utilizada após o esgotamento das técnicas não farmacológicas de alívio da dor.
Mas fique claro: evitar a analgesia (desde que em comum acordo com a gestante) não é negá-la indefinidamente. Em alguns casos, a dor intensa provoca uma experiência de parto tão difícil que a gestante pode preferir seguir para uma cesariana intraparto do que continuar tentando o parto normal. Negar a analgesia nessas situações (quando ela poderia, inclusive, ajudar no parto) pode ser considerado uma forma de violência obstétrica.
Como é uma cesariana respeitosa?
Os mesmos princípios de autonomia, respeito e não intervenção do parto humanizado podem ser adaptados para uma cirurgia cesariana respeitosa. Como por exemplo:
- Luz da sala apagada, apenas os focos cirúrgicos acesos, para conforto seu e do bebê que nasce.
- Música escolhida por você, senão, silêncio.
- Presença de acompanhante desde a entrada na sala.
- Braços livres.
- Boca “livre”, não é preciso ser silenciada.
- Não é preciso ser sedada após a cirurgia para “descansar”.
- Descer o “paninho” (campo cirúrgico) assim que o bebê nascer para que vocês se reconheçam.
- Entregar o bebê que nasce imediatamente para a mãe (exceto em casos de reanimação).
- Chega de bebê de cabeça pra baixo e tapinha no bumbum!
- Não é preciso aspirar o bebê que nasce bem, espirro e tosse é normal.
- Secar levemente o bebê, sem remover toda a “cera” (vérnix).
- Aguardar 1-3 min para cortar o cordão umbilical.
- Permitir que o acompanhante corte o cordão.
- Manter o bebê no colo da mãe, pele com pele, até que acabe a cirurgia.
- Permitir que o bebê cheire, lamba o seio e tente mamar nessa hora.
- Possibilidade de medir e pesar o bebê na sala cirúrgica, para que todos vão juntos para o quarto, sem passar pelo berçário.
Todos esses ajustes são possíveis de serem executados por qualquer equipe, em qualquer hospital, e suas vantagens no processo do parto são baseadas em evidências científicas dos estudos mais recentes.
Cesárea não precisa ser linha de produção. Para o médico pode ser somente mais uma cirurgia, para a família é um momento único e inesquecível.
Por que esperar o tempo do bebê?
Inúmeros hormônios e substâncias atuam no organismo da mãe para iniciar o trabalho de parto. Hoje sabemos que o que desencadeia todo esse processo é uma sinalização entre o corpo do bebê, quando já está maduro, e o corpo da mãe.
Essa garantia de amadurecimento e o início do trabalho de parto são importantes por uma série de razões:
- O início do trabalho de parto favorece a produção dos hormônios maternos que serão responsáveis pela produção e liberação de leite para a amamentação;
- O bebê ganha mais peso e se torna mais preparado para a vida fora do útero, quando é comum perder algum peso nos primeiros dias de nascimento;
- O início das contrações uterinas “acorda” o corpo do bebê para a produção dos últimos hormônios necessários para o amadurecimento do seu organismo;
- O pulmão é o último órgão a amadurecer e recebe hormônios até durante o trabalho de parto;
- O nascimento após o trabalho de parto espontâneo reduz significativamente as chances de o bebê ter complicações médicas como síndrome do desconforto respiratório, uso de ventilação mecânica, internações em UTI neonatal e morte do recém-nascido.
O único parâmetro seguro para sabermos se o bebê amadureceu completamente é o início do trabalho de parto ou o rompimento espontâneo da bolsa a termo completo (a partir das 39 semanas de gestação).
Não existem testes ou exames que possam determinar com segurança o amadurecimento do bebê para uma cesariana agendada. E mesmo que o agendamento aconteça após as 39 semanas, por exemplo, a data fixa pode levar ao parto antes do tempo ideal porque não se pode descartar um possível erro no cálculo da idade gestacional, por falha de memória na data da última menstruação, erro no preenchimento dos prontuários da gestante e até mesmo subjetividade nos dados do exame de ultrassom.
O bebê também pode ter um processo mais humanizado?
Certamente! O nascimento já é, em si, um momento de intensa transição. Na humanização do parto também ampliamos a atenção respeitosa aos cuidados desse bebê que nasce.
A hora de ouro é a primeira hora de vida do recém-nascido, imediatamente após seu nascimento. Nos partos humanizados, incentivamos que durante esse período a mãe fique em contato pele a pele com seu bebê, que pode ter proximidade com o seio materno para tentar mamar um pouco de colostro. Também é nesse momento que mãe e filho se reconhecem pela primeira vez fora do útero, uma das experiências mais avassaladoras que alguém pode ter na vida.
Todos os procedimentos de rotina, como pesar, medir e vestir podem esperar o final da hora de ouro para acontecer. E as principais avaliações de vitalidade (índice Apgar) podem ser feitas apenas observando o bebê no colo da mãe.
Além disso, o bebê também não deve sofrer procedimentos desnecessários:
- Separação da mãe e bebê – Não é preciso enviar o bebê que nasce para o berçário. Nada é mais benéfico para um recém-nascido que o contato com sua mãe, favorecendo a amamentação, a conexão emocional e a sensação de segurança essenciais para um bom desenvolvimento.
- Uso de sondas – Não é necessário colocar sondas (canudinhos) ou sugadores na boca, nariz, ânus e vagina de bebês saudáveis. A maior parte das malformações podem ser observadas a olho nu.
- Corte prematuro do cordão umbilical – A OMS orienta aguardar pelo menos 1 a 3 min após o nascimento para cortar o cordão de todos os recém-nascidos que tiverem boas condições clínicas. Isso reduz em até 50% a chance de anemia na primeira infância.
- Aspirar as vias aéreas – Antes era prática de rotina, mas hoje evidências científicas apontam que não só é desnecessária, como é prejudicial para o recém-nascido.
- Uso do colírio nos olhos – Ele previne a conjuntivite gonocócica, que pode ser transmitida através do contato com a vagina de uma mulher com gonorreia. Mas existe um efeito colateral do uso do colírio (a conjuntivite química) que pode ser evitado em uma assistência médica individualizada, em que se conhece o histórico médico da mãe.
- Banho com menos de 24h de vida – O vérnix protege e hidrata a pele sensível do recém-nascido, além de ajudar na regulação da sua temperatura corporal. Pode-se limpar suavemente o excesso de sangue, se houver, mas o ideal é que o primeiro banho não seja dado antes de 24h de vida.
Conclusão
Ninguém pode efetivamente ajudar uma mulher a parir. O objetivo é evitar interferir desnecessariamente.
(Michel Odent)
Com o passar dos anos, a massificação da cesárea como via “moderna, controlada e sem dor” marginalizou as formas de parto mais naturais, que são perfeitamente seguras e mais saudáveis para a maior parte das mulheres.
Pela ótica da ciência, hoje sabemos que a cirurgia cesariana aumenta consideravelmente os riscos de complicações no parto e pode até prejudicar a mãe e o bebê quando não é bem indicada.
Pela ótica do protagonismo feminino, podemos dizer que a humanização do nascimento (qualquer que seja a via de parto) é um movimento principalmente de empatia e respeito pela autonomia da mulher.
É um exercício de humildade para nós, da equipe médica, pois envolve a compreensão de que não somos super-heróis. De que em fenômenos fisiológicos, como o parto, só somos de verdade úteis quando não atrapalhamos.
E é um movimento de confiança. De que a mulher é capaz de compreender e escolher o que é melhor para si. De que seu corpo é capaz de gestar. De que seu seio é capaz de nutrir. De que na maioria das vezes ela será capaz de parir, e que não é preciso uma parafernália de equipamentos, manuais e procedimentos para fazer isso.
Ser mulher é potência, e depois que ela se expande a ponto de abrigar outra vida, nunca mais volta a aceitar os espaços onde cabia antes.
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